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A ordem das Coisas

por Roberto Muggiati

”Moacir Santos
tu que não és um só, és tantos
como este meu Brasil de todos os santos.”
(Samba da Bênção, B.Powell/Vinicius de Moraes)

Há músicos que só fazem música, e ponto final. Felizmente, existem outros que, além de fazer música, levam mais além sua paixão e se dedicam à pesquisa. Descobrem novos mundos, resgatam partituras e gravações perdidas, enriquecem o universo musical. É o caso de Andrea Ernest Dias, a grande flautista que nos últimos anos se voltou para a vida-obra de Moacir Santos (1926-2006), um dos gigantes da música brasileira, relegado a injusto esquecimento, muito mais celebrado no estrangeiro do que em seu próprio país. O trabalho de Andrea deu frutos e em agosto de 2014 ela concretizou um Festival Moacir Santos: oito dias de música e debates espraiados pelo eixo Rio-Brasília-Recife.

Além de se apresentar no evento com o TRIO 3-63, formado por Andrea (flautas), Marcos Suzano (percussão) e Paulo Braga (piano) – todos nascidos em 1963 –, ela lança um CD, Muacy (Sambatown), e um livro, Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro (Edições Folha Seca). “Muacy” é como foi grafado o nome de Moacir no registro de batismo da capela de São José do Belmonte, no sertão pernambucano, onde ele nasceu.

Existe uma simetria impressionante entre o êxodo dos jazzistas do Sul dos EUA para Chicago e Nova York, em busca de uma vida melhor, e a arribação dos instrumentistas nordestinos para o eixo Rio-São Paulo. A grande saga cultural de figuras como Moacir Santos, os também pernambucanos Severino Araújo (Limoeiro) e Juarez (Surubim), os recifenses Heraldo do Monte e Walter Wanderley, o paraibano Sivuca (Itabaiana), o alagoano Hermeto Pascoal (Olho d’Água das Flores). Talento precoce nas bandas do Nordeste, Moacir mudou-se para o Rio em 1948, ganhou espaço na orquestra da Rádio Nacional, estudou com Guerra-Peixe, Radamés Gnatalli e Hans Joachim Koellreutter e foi professor de Baden Powell, Paulo Moura, João Donato, Nara Leão, Roberto Menescal e Sergio Mendes. Em 1965, lançou sua obra-prima, o álbum Coisas, e em 1967 radicou-se na Califórnia, em Pasadena.

Das dez faixas do CD, sete são de Moacir. As três exceções têm tudo a ver com ele. Andrea as descreve: “A valsa Nostalgia, de Radamés Gnatalli, ganhou uma interpretação bem gaúcha, puxando um pouco para o chamamé, homenageando a relação aluno-professor entre eles. A suíte Olorum-Rei, de Carlos Negreiros, consagra a tradição africana entre nós. Paulo Braga já gravou o seu Farol em outros CDs. Aqui os parceiros me deixaram à vontade pros solos”. Quanto aos temas de Moacir, Andrea faz observações pontuais: “No solo de Coisa nº 1, busquei uma referência aos traços de Bach, a quem Moacir idolatrava. Em The Beautiful Life, temos Teco Cardoso ao sax barítono, o instrumento de Moacir. Paraíso é um paraíso! Suzano incrementou a levada, a gente se deliciou naquela melodia e Paulo caprichou no solo. Na partitura de Love Go Down consta “blue-ballad”, é um Moacir introspectivo, diferente. Chegou a gravá-la, mas não lançou. A Santinha Lá da Serra, toada de Moacir com letra de Vinicius de Moraes, é quase uma serenata na voz de Lui Coimbra, com direito a violão de aço. Outra Coisa foi a música em que Moacir apresentou seu “mojo” para os americanos. Mantivemos o “mojo” e adaptamos a partitura original para o trio, a melodia ficou com a mão esquerda do piano. Sambatango é bem hollywoodiano, anos 70, com aquela mão esquerda bem marcada e o ritmo invertido. Não alteramos a partitura, apenas incluímos os solos”.

Sambatango, Love Go Down e The Beautiful Life são inéditos descobertos por Andrea ao pesquisar o acervo do compositor na Califórnia. Existe na música de Moacir Santos uma atração quase hipnótica provocada por sua excepcional manipulação dos ritmos. O compositor Paulo Costa Lima aparenta essa qualidade aos padrões do candomblé da Bahia, que o levaram à ousada afirmação de que “a África inventou o serialismo, pela via do ritmo, tal a importância dessas operações de recombinação rítmica, sua lógica estrita, sua flexibilidade apaixonante”. Em Moacir Santos, no prefácio ao livro de Andrea, Costa Lima vê “o gesto tão original, e ao mesmo tempo tão despojado, de chamar músicas de coisas, que deveras são, como fez Moacir Santos. De certa forma, todas as músicas que existem são coisas, e dessa forma meio que desafiam a autossuficiência da linguagem, colocando-a em seu devido lugar”.

Depois de passar dias seguidos mergulhado no oceano sonoro das Coisas, me veio à lembrança a noção de “lacrimae rerum” do poeta Virgílio (70-19 a.C.) – a lágrima das coisas. Nas composições de Moacir – no seu equilíbrio notável entre a vivacidade dos ritmos e a nostalgia melódico-harmônica – encontro essa “lágrima das coisas” que é, na verdade, uma imensa compaixão pelos seres e pelo mundo. Um sentimento que Andrea Ernest Dias, Marcos Suzano e Paulo Braga compartilham tão bem nesse admirável Muacy.

 

www.festivalmoacirsantos.art.br

Álbum: MUACY

Artista: TRIO 3-63  (Andrea Ernest Dias, Marcos Suzano e Paulo Braga).
Participações especiais: Teco Cardoso, Lui Coimbra e Carlos Negreiros

Selo: Sambatown

Distribuição: Sonora Música

Ano: 2014

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