MOACIR SANTOS, OU OS CAMINHOS
DE UM MÚSICO BRASILEIRO
A bênção, Maestro Moacir Santos, que não és um só, és tantos, tantos como o meu Brasil de todos os santos, inclusive meu são Sebastião. Saudado por Vinicius de Moraes no “Samba da bênção” ao lado dos grandes da música brasileira, o maestro Moacir Santos permaneceu, no entanto, pouco conhecido em seu país, enquanto construía uma sólida carreira no exterior.
És tantos, dizia o poeta, porque o maestro foi também instrumentista, arranjador, compositor e professor. Se observarmos os dados básicos de sua biografia – nascimento em Flores do Pajeú, Pernambuco, Brasil, e morte em Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos –, já teremos uma ideia do tamanho do seu percurso. Mas se conhecermos as condições sociais em que nasceu, adversidades que enfrentou e glórias que conquistou na cena musical internacional, sentiremos, sem dúvida, profunda e terna admiração pela figura do maestro. É o que consegue este livro.
Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro, da musicista e pesquisadora Andrea Ernest Dias, vem consolidar o movimento pelo reconhecimento do maestro como um dos maiores valores da cultura nacional, movimento esse iniciado há pouco mais de uma década e que contou inclusive com a flautista no famoso projeto Ouro Negro.
Ao dosar biografia e análise musical com rigorosa metodologia e extensa pesquisa histórica, documental e de campo, consultando fontes primárias em grande parte inéditas, Andrea Ernest Dias traz uma contribuição efetiva à bibliografia da música brasileira, tão desgastada por meras crônicas do meio musical.
A busca de Moacir Santos por um som próprio, como bem demonstra este livro, resultou em uma assinatura musical original, e a busca pessoal do menino pobre nascido músico longe dos grandes centros urbanos por um lugar social rendeu-lhe estabilidade e reconhecimento ainda em vida. Só faltava mesmo a vitória da memória para tornar o reconhecimento permanente.
A benção, Maestro Moacir Santos...
Edinha Diniz
Escritora, pesquisadora e biógrafa de Chiquinha Gonzaga
Foto Rachel Guedes
PREFÁCIO
Foi Balzac que imaginou um livro escrito apenas em torno da trajetória de uma palavra, ao longo dos séculos. E que livro de aventuras e peripécias incontáveis seria escrito em torno da palavra “coisa”... O fato é que ela se instala em plena linguagem como algo que celebra tanto a nomeação como sua impossibilidade.
Embora marcada pela linguagem, uma coisa é algo de indefinido e talvez indefinível, e vale observar que dá origem a um vigoroso discurso filosófico pelas mãos de Heidegger. Por outro lado, no campo da psicanálise, temos o Das Ding (A Coisa), que ocupa lugar central no pensamento de Freud e de Lacan, justamente como fonte de energia da libido, lugar de sublimação.
Para completar uma verdadeira trilogia de enraizamento teórico devemos lembrar a preferência da tradição marxista em denunciar a coisificação do ser humano nas engrenagens do sistema capitalista. Tudo isso sem mencionar a miríade de formações populares do cotidiano que atribuem à palavra uma gama sem fim de usos e funções (significados, portanto), algumas vezes bastante jocosas, substituindo curiosamente o nome das pessoas – Sr. Coisinho, Da Coisinha, e por aí vai...
No livro dedicado à palavra ‘Coisa’ haveria de estar registrado com destaque o gesto tão original, e ao mesmo tempo tão despojado, de chamar músicas de coisas, que deveras são, como fez Moacir Santos. De certa forma, todas as músicas que existem são coisas, e dessa forma meio que desafiam a autossuficiência da linguagem, colocando-a em seu devido lugar. E ainda bem que houve um de nós, criaturas do mundo dos sons, capaz de perceber isso e de marcar de forma tão criativa essa interface.
A leitura de Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro deve ser entendida como a aventura de parear com esse tipo de criador, e, não por outra razão, se apresenta através da fascinante pergunta: “que busca é essa que parece não ter fim?”, feita pela autora logo nas primeiras páginas.
Pois bem, a ‘Coisa’ é uma busca, e o livro respeita a sacralidade da criação e se organiza a partir desse respeito, movendo perspectivas distintas em busca de uma musicologia capaz dessa flexibilidade: origens, processos de formação e atuação profissional, traslado ao Rio de Janeiro, novos processos de formação, atuação pedagógica, parcerias profissionais, produção composicional, migração para a Califórnia (via Nova York) e reinício de todo o ciclo, repercussão, memória. Todas essas dimensões recebem tratamento carinhoso da autora, revelando uma riqueza de caminhos e de consequências.
Esse cuidado de multiperspectivas vai nos mostrando um Moacir que é talvez assim como uma peça ausente de um intrincado quebra-cabeça cultural. Ele estuda com Guerra-Peixe e H. J. Koellreutter e ensina a deus e o mundo, inclusive Baden Powell, Sergio Mendes, Nara Leão, Quarteto em Cy, Nelson Gonçalves... transita de um contexto popular no sertão de Pernambuco para os discursos da vanguarda, atua na música de cinema, no jazz, na música instrumental brasileira, e investe cada vez mais nos laços rítmicos com a Mãe África.
Ah, que cada vez me sinto mais próximo de Moacir (sendo ao mesmo tempo tão diferente) – vejo em sua estante livros que também li e celebrei, e claro, reverbera em mim seu amor à música de J. S. Bach – mas, sobretudo, essa percepção das estratégias de recombinação rítmica que o presente estudo apresenta de forma tão cuidadosa através de diversos documentos e análises.
Pois é, eu, que também navego nessas ondas (escrevi um Kyrie para Nanã), e que estudando a organização binária (durações de um ou dois tempos) dos padrões do candomblé da Bahia, cheguei a dizer num artigo publicado na revista Sonus, de Boston, que a África inventou o serialismo, pela via do ritmo, tal a importância dessas operações de recombinação rítmica, sua lógica estrita, sua flexibilidade apaixonante. Sinto, portanto, que estou diante de um irmãozinho de fé. O desafio e mistério da criação de música, assentado na encruzilhada cultural que nos constitui.
Mas não foi por acaso que a leitura me conduziu a essa catarse de proximidade. É que o estudo desenha uma dinâmica narrativa toda sua, reencenando a trajetória de vida de Moacir Santos, mas enriquecendo cada passo com uma plêiade de informações e visões em flash de todas as sinapses que ele representa – o percurso de Moacir ressignificando todos os cenários que nos vão sendo apresentados.
Desse processo transpira todo um cuidado com a qualidade e relevância das informações que vão sendo incluídas na tecelagem – remetendo à própria visão e capacidade de interpretação da autora (gostaria de dizer, do eu lírico dessa investigação, pois é, as investigações são atos de criação). A trajetória culmina na exploração analítica de uma série de situações musicais projetadas pelo compositor, e vai além, desaguando na emocionante “carta a Moacir Santos”, que poderia muito bem ser descrita como uma espécie de cadenza ou canja desse mesmo eu lírico.
É quando nos damos conta de que a orientação interpretativa esteve presente o tempo todo – tratando a trajetória do compositor como se fosse uma partitura a ser vivenciada pelo leitor intérprete, com direito a improvisações. Em cada capítulo, em cada detalhe, a consciência da grandeza de Moacir Santos, sua trajetória de herói brasileiro juntando as pontas do que somos e do que deveríamos ser.
Paulo Costa Lima
Compositor, educador, fundador do Grupo de Compositores da Bahia
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